Lembranças, lembranças...

Panicléia pensou naquilo e rapidamente parou de pensar. Não queria pensar naquilo por muito tempo. Pensou em margaridas. Mas lembrou-se que nunca tinha visto margaridas antes. Pensou então em tulipas, mas lembrou-se também que só havia visto num filme de algo parecido com uma fadinha. Pensou então em uma cadeira, pois não corria o risco de nunca ter visto, e lhe poupava o esforço de imaginá-la em seus mínimos detalhes. A imagem da coisa voltou  à sua casa imaginária. 

Na verdade, ela tentava não pensar em nada que pudesse lembrar a coisa, mas uma cadeira, lhe lembrava uma mesa, e era o que estava em cima de uma mesa na casa de um ex-amigo que ela recusava-se a pensar. Na verdade não era a coisa em si, mas era uma outra coisa da qual a coisa em cima da mesa lembrava. A coisa em cima da mesa não era grande, mas também não era tão pequena para ser pega com apenas uma mão. Era uma caixa.

O problema da caixa era que, dentro dela havia uma outra coisa, tão repugnante em pensamento que só de pensar no que poderia ser o que era, Panicléia já sentia um arrepio e procurava pensar em alguma outra coisa. Não que ela não soubesse o que era. Mas ela não só sabia, como fazia questão de não lembrar, de forma que não se lembrasse de tudo o que a coisa dentro da caixa poderia lembrar.

A luz que vinha da janela iluminava fracamente a cozinha, e Panicléia preferiu manter as luzes apagadas. Estava defendendo uma causa ultra-ambientalista, e ligar a luz em plena crise seria como dizer a um assassino de aluguel para não matar. Tateando cuidadosamente um armário acima da pia, achou um pequeno frasco de vidro vermelho com um estranho remédio receitado por um cigano numa feira hippie.

Pelos de vaca não são o que os médicos convencionais receitariam para nervosismo, mas era exatamente aquilo que Panicléia tomava para ver se conseguia parar de tremer as mãos. Na verdade, para ela era mais complicado pensar em como aqueles pelos chegaram num pequeno pote de vidro, do que pensar se aquele estranho chá marrom faria efeito. O gosto daquilo era indescritível, mas ela descreveria depois como uma "nojenta mistura de água e pelo de vaca", o que não ajudaria muito numa tentativa de se saber como era o gosto. 

Pensou novamente na cadeira, e em vez de se lembrar da mesa, sentou. Tomando o chá, olhou para fora e viu que havia uma coruja, olhando com seus grandes olhos, segurando um lápis no bico. Cuspiu brutalmente e caiu da cadeira. Olhou para a janela: a coruja não estava mais lá. Chorou. Era um lápis! O mesmo objeto que havia dentro da caixa, as mesmas lembranças, as mesmas e dispensáveis lembranças...


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